Então, o Rei dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. (Mateus 25:41)
Discussões sobre a doutrina da salvação (soteriologia) à luz da “modernização” do estilo de vida dos cristãos da atualidade podem ser muito instrutivas para identificar ideias importantes tanto nas questões de salvação quanto de estilo de vida.
A mensagem bíblica de que a salvação é “pela graça, mediante a fé” e “não vem de nós”, ainda que posterior e secundariamente gere “boas obras” de antemão preparadas por Deus para que os salvos vivam nelas (Ef 2:8-10) é importantíssima na medida em que estabelece um paradigma inamovível na relação salvação/estilo de vida. Não há estilo de vida que gere salvação a seu adepto, e se houvesse isso destruiria completamente a mensagem bíblica da salvação pela graça (cf. Rm 11:6).
Em função disso, há polêmicas sérias no mundo cristão, especialmente nas discussões entre monergismo (Deus é o único agente da salvação de um pecador) e sinergismo (Deus e homem cooperam na experiência da salvação de um pecador) que é a principal discussão entre calvinistas e arminianos à luz da sempre complicada relação entre soberania/predestinação divina e liberdade/responsabilidade humana. Essa controvérsia já divide a igreja cristã há séculos e não há a menor indicação de que tais grupos chegarão a um consenso em torno do tema, só o que tem havido é um aprofundamento de cada grupo na tentativa de expressar biblicamente sua própria visão e na tentativa de refutar biblicamente a visão contrária.
Além disso, a questão do estilo de vida adequado para os cristãos também é objeto de intenso estudo bíblico e de acalorado debate dentro das igrejas de maneira geral, sendo que cada uma delas tem sua interpretação particular (mas nem sempre em consenso dentro da própria igreja) sobre como traduzir os textos bíblicos em diretrizes práticas quanto aos desafios do mundo moderno em torno de questões gerais.
Deus admite que o salvo se envolva com um estilo de música no qual a bateria/percussão é um elemento importante? Deus aceita que uma cristã, salva, use maquiagem, calça comprida, salto alto? Deus se opõe a certas cores de roupas para os salvos, exemplos, o vermelho para as mulheres (por ser uma cor símbolo de sensualidade ou até mesmo prostituição [Ap 17:4]) ou o cor-de-rosa para os homens (por ser uma cor símbolo do feminino ou até do homossexualismo em nosso mundo)? Uma pessoa salva pode freqüentar o cinema? Mil outras perguntas poderiam surgir nesse tipo de contexto. Um cristão salvo pode: tomar remédio? Fazer uso de energia elétrica? Navegar na internet? Dirigir carros movidos a combustível fóssil? Etc. ad infinitum...
Não me proponho a me aprofundar nas possivelmente complicadas implicações doutrinárias, sociais, éticas, ecológicas e espirituais de cada possível resposta a essas e outras milhões de perguntas similares, mas desejo propor algumas perspectivas sobre as questões de uma correta relação entre salvação e estilo de vida a fim de usar minha capacidade de pensar e minha função de fazer os outros também pensarem na direção de melhor compreendermos, todos, a Palavra de Deus.
Imaginemos cristãos verdadeiros, tanto quanto é possível ser. Amor e fé, as únicas coisas que realmente importam para o cristianismo (Mt 22:34-40; Jo 13:34-35; Gl 5:6) são realidades palpáveis e reconhecidas na vida deles ainda que não em grau absoluto. Isso quer dizer que eles permanecem pecadores salvos pela graça, mas são pecadores coerentes com a mensagem cristã de uma fé que gera amor genuíno no cumprimento da missão da igreja. Nesse grupo dos “cristãos verdadeiros”, há homens e mulheres.
Agora imaginemos Jesus voltando para buscar os seus escolhidos (Mt 24:31). Naquele momento haveria espaço para Jesus dizer assim pra um desses cristãos verdadeiros?
Você é um homem de fé e de amor a Deus e aos homens, mas em sua igreja você me louvava ao som de músicas com instrumento de percussão/bateria. Aparta-te de mim, maldito (Mt 25:41)!
Para outra pessoa, Jesus diz:
Moça, você é uma mulher de fé e de amor a Deus e aos homens, mas usa maquiagem, calça comprida, salto alto, e peças de roupa vermelhas. Aparta-te de mim, maldita (Mt 25:41)!
Para ainda outro cristão Jesus talvez diga:
Você é um homem cristão de fé e de amor a Deus e aos homens, “mas usa camisa cor-de-rosa”, ou, “mas vai ao cinema”. Aparta-te de mim, maldito (Mt 25:41)!
Poderíamos multiplicar exemplos indefinidamente.
Mas o ponto é: como avaliar uma possível postura da parte de Jesus nessa direção? Seria tal postura coerente com sua natureza, caráter e Revelação?
Já que discussões sobre esse tipo de questão nunca são simples, vamos adicionar outros elementos ao quadro geral. Músicas, maquiagens, roupas, sapatos, filmes e mil outros fenômenos em nosso mundo representam formas humanas de expressão. E o que o ser humano expressa através dessas e de outras formas? Aquilo que vai sem seu coração (cf. Mt 12:34).
E aí? Será que aquilo que está no nosso coração pode nos fazer perder a salvação?
No mesmo contexto onde Jesus fala que “a boca fala do que o coração está cheio”, ele adverte sobre o pecado imperdoável (Mt 12:31). E aí, será então que o quadro pintado acima pode realmente ocorrer? Como se posicionar diante disso?
Primeiro de tudo.
A Bíblia diz que “onde não há lei, não há pecado” (Rm 4:15).
Diretamente, a Bíblia não fala de padrões divinamente autorizados ou condenados em torno de estilos musicais, estilos de maquiagem, peças de sapato ou de roupa diferenciados em função de formato ou cor, de cinema e de tantas outras coisas que existem na realidade do nosso mundo. Por si só, essa informação precisa nos tornar cautelosos em exprimirmos uma potencial condenação de Jesus às pessoas em função desse tipo de coisa não revelada claramente na Bíblia.
Ainda assim, muitos buscam apoio para pregar que tais e outras coisas são pecado. Assim é que muitos nos lembram que o cristianismo prega que os salvos não podem amar “as coisas que há no mundo” (1 Jo 2:15). Creio que a expressão “as coisas que há no mundo” é ampla o suficiente para condenar bateria, maquiagem, calça comprida, salto alto, roupas coloridas, cinema e MUITO MAIS. Aliás, essa expressão é capaz de condenar TUDO que há no mundo, a internet, a eletricidade, o oxigênio e todo o resto.
Outras citações bíblicas são usadas na direção de fundamentar melhor e de forma mais específica esse tipo de condenação, mas no final das contas sempre há interpretações alternativas melhores do que aquelas que procuram ver uma justa condenação em função de tais questões.
Resumidamente, a Palavra de Deus fala da perdição de pessoas em função do não arrependimento de pecados reais, exemplos: “assassinatos, feitiçarias, prostituição e furtos” (Ap 9:20-21). Essas são questões reais e sérias, claramente condenadas na Palavra de Deus e, por isso, a condenação de tais é justa, o que não seria o caso de cristãos verdadeiros condenados por “música com bateria”, “maquiagem”, “calça comprida”, “roupa vermelha”, “roupa cor-de-rosa”, e “cinema”.
Para terminar. Entretanto, tais questões não podem simbolizar esses pecados e estar relacionados a eles?
A bateria não pode ser relacionada à feitiçaria pagã originária da África?
A Maquiagem também não teve uma origem pagã, no Egito, e era usada também para propósitos de sensualidade pecaminosa?
Não poderíamos, mais ou menos nas mesmas direções, achar elementos de condenação bíblica associados à calça comprida, às roupas vermelhas ou cor-de-rosa, ao cinema e etc? Sim, mas ainda assim nossos problemas ainda não terminaram.
É verdade que quando uma música, uma roupa, uma “diversão” estão associadas ao pecado de uma pessoa, essa pessoa pode vir a ser condenada caso se manter no erro até pecar contra o Espírito Santo, entretanto há um problema.
Nem toda pessoa que ouve música com bateria tem qualquer ligação com feitiçaria. Nem toda mulher que usa maquiagem, calça, salto alto ou roupa vermelha é movida por sensualidade pecaminosa. Nem todo frequentador de cinema é um assassino em série influenciado e disposto a metralhar seus parceiros de poltrona no final de um filme.
Há casos e casos, e se nós somos capazes de diferenciar intenções potencialmente diferentes em ações perfeitamente similares, Deus o pode fazer de forma absoluta. Deus conhece as intenções e as realidades, e ninguém será condenado injustamente.
No final das contas, é plenamente possível que um não frequentador de cinema que é violento pode ser condenado por ter cometido o pecado sem perdão e torno da violência, enquanto um admirador da série “duro de matar” que viu todos os filmes de Bruce Willis no cinema (vejam que meus conhecimentos na área do cinema estão levemente ultrapassados) não seja condenado por Deus como um assassino não arrependido “maldito”.
Poderíamos multiplicar exemplos indefinidamente nas outras questões também.
Por fim,
Poucas questões podem ser mais sérias do que a condenação de um ser humano a quem Jesus morreu para salvar. Não há como lidar com isso com a superficialidade e maldade que se vê em alguns círculos ditos cristãos. Se comportamentos tais, não regulamentados claramente na Bíblia se tornam motivo de acusação e condenação mútua dentro da igreja, isso é um sintoma de algo muito mais sério, o esfriamento do amor entre os próprios cristãos (Mt 24:12). E se esfriarmos em nosso amor a Deus e aos homens, nossa vida moral “impecável” em plena negação das “músicas mundanas”, das “maquiagens de Jezabel”, das “roupas da prostituta do Apocalipse”, da aparência da homossexualidade, e das diversões “pecaminosas” não poderão evitar, na verdade, a nossa própria condenação.
O propósito desse texto não é oferecer argumentos para que alguém ouça músicas que não deseje ouvir, use roupas que não deseje usar ou vá a lugares que não deseje ir, tanto em função de sua consciência pessoal quanto das orientações da igreja nas pessoas de seus líderes (eu, inclusive). Não!!!
O propósito é simplesmente nos lembrar que a condenação de um ser humano à perdição não pode seguir uma lógica superficial.
Graça e Paz
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