porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes.
Efésios 6:12
O mundo espiritual é um mundo enigmático e constitui um dos elementos da revelação de Deus aos homens através de sua Palavra (João 17:17). Os seres humanos estão envolvidos diretamente nesse mundo, ainda que percebam isso de forma mais ampla e consciente.
Nesse post estou trazendo aos estudiosos uma tradução de um verbete (principados e potestades) de um dos mais respeitados dicionários bíblicos a respeito da obra de Paulo: "O dicionário de Paulo e suas cartas" (Dictionary of Paul and His Letters, Gerald F. Hawthorne, Ralph P. Martin [editors]).
Essa é uma obra interessante e importante e sua linguagem, apesar de técnica, é acessível àqueles que se predispuserem a buscar conhecimento da Palavra de Deus.
Que todos os interessados façam um excelente proveito dessa tradução!!!
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Graça e Paz!!!
Principados e Potestades
Os dois termos: Principados e Potestades são palavras usadas para designar uma variedade de termos que Paulo usou para se referir a poderes que foram criados por Deus, mas que eram de alguma forma, hostis contra Cristo e contra sua igreja. O significado preciso desses termos em seus variados contextos tem sido um assunto de debate entre os eruditos. A maioria deles concordaria, contudo, que Paulo estava falando de uma dimensão espiritual da ordem criada (portanto eles seriam poderes objetivos, e pessoais) que, sendo inimigos de Cristo e de sua igreja, foram de alguma forma, combatidos ou conquistados (vencidos) por Jesus Cristo. Uma abordagem promissora é analisá-los a partir da perspectiva da tradição da guerra no Antigo Testamento.
- Interpretação dos poderes
- Terminologia, contexto, e pano de fundo
- A natureza dos poderes
- Cristo e os poderes
1. Interpretação dos poderes
A interpretação desses poderes tem sido discutida dentro de um horizonte hermenêutico moldado por preocupações políticas e sociais. Conquanto a visão existencialista de Bultmann via os poderes como projeções místicas de origem humana e doentia sobre o cosmos, Oscar Cullmann, falando no contexto da Europa logo após a segunda guerra mundial, apresentou uma interpretação de Romanos 13 e 1 Coríntios 2:6-8 que via os poderes como autoridades tanto espirituais quanto civis, e por isso fez um balanço teológico em relação ao bem ou ao mal potencial exercidos pelo Estado (veja também Morrison). Entretanto uma linha de interpretação particularmente influente tem sido a de que Paulo estava demitologizando os poderes e empregou essa linguagem para se referir às estruturas da existência terrena tais quais: a tradição, a moralidade, a justiça, e a ordem (Berkof). Essa abordagem tem sido adotada por outros que têm argumentado que Paulo estava se referindo tanto a estruturas sócio-políticas e às forças espirituais por detrás de tais estruturas (Yoder, Mouw).
O estudo mais compreensivo sobre esse assunto foi o empreendido por W. Wink, que pesquisou a completa extensão em que Paulo fez uso da linguagem dos poderes (não somente onde ele se refere ostensivamente a entidades não humanas ou diferentes dimensões da realidade). Ele conclui que Paulo usou a linguagem imprecisa e intercambiável dos poderes para se referir simultaneamente aos ‘aspectos interiores e exteriores da manifestação de qualquer poder concedido’ (Wink, 5).
Conquanto o próprio Paulo cresse na realidade ontológica de um mundo espiritual invisível, Wink acha que a perspectiva de Paulo era bem mais sutil do que foi percebido e apreciado no passado. Paulo já tinha tomado a direção de demitologizar a visão de mundo ao expandir a lista de inimigos de Cristo e de seu povo ao incluir a lei, o pecado, a carne, e a morte. Os ‘poderes são tanto terrenos quanto celestiais, divinos e humanos, espirituais e políticos, invisíveis e estruturais’ (Wink, 100). Como tais eles são capazes de ser ‘dispotencializados’ e ‘neutralizados’ – e inclusive redimidos – no plano de Deus para a restituição cósmica (Wink, 50-53; veja a crítica em Arnold 1989, 48-51, 129-34, 198-201).
A noção de que o uso de Paulo da linguagem dos principados e potestades foi usada sempre em referência a anjos bons a serviço de Deus, foi argumentada até certo ponto por W. Carr. Mas sua interpretação de textos como Colossenses 2:14-16 e o expediente exegético de concluir que Efésios 6:12 não era parte do texto original, conduziu a maioria dos intérpretes a repudiar suas propostas. (veja Wink, O’brien, 125-28). A atenção tem sido devotada também em direção à relação entre as referências de Paulo aos poderes e a demitologização implícita nos textos mágicos do mesmo período (veja, Arnold).
2. Terminologia, contexto, e pano de fundo
A extensão da terminologia de Paulo ao falar dos poderes era variada e em alguns casos ambígua para os intérpretes modernos.
2.1 Designações de Poder e autoridade: Uma grande porção dos termos que Paulo usa tem elementos em comum: (1) Eles não são nomes próprios (ex. Belial; Belzebu), nem refletem habilidades particulares (ex. engano; contenda; erro), mas parecem ser títulos, ou classificações nominais, as mais proeminentes parecem estar baseadas em qualidades abstratas de poder e autoridade. (2) Os termos empregados são potencialmente ambíguos para intérpretes modernos por que na maior parte das vezes eles dependem do contexto para definir se eles se referem a líderes e potestades humanos ou não-humanos – ou de forma menos plausível, a ambos. (3) Eles ocorrem mais freqüentemente no plural, ou a pluralidade está implícita (ex. pasan archein 1 Cor 15:24; Efésios 1:21; Colossenses 2:10), e parecem se referir a classes de seres. (4) Na maioria dos casos eles aparecem em uma série de nomes similares. (5) Os nomes em si sugerem alguma possibilidade de que eles se refiram a uma hierarquia de poderes dentro do mundo espiritual, mas se esse for o caso, a evidência é insuficiente para determinar qual o ranking. (6) Esses poderes, diferentemente daqueles chamados de ‘demônios’, não são retratados como habitando corpos humanos ou de ídolos, nem residem ‘debaixo da terra’; Quando seu domínio é indicado ou implicado, é ‘céu e terra’ ‘a presente era’ e nas ‘regiões celestiais’. Isso implica que seu poder é de extensão cósmica.
2.2 contextos: Nos escritos de Paulo esses termos são usados em um contexto que implica poderes não humanos (excluindo-se por agora a expressão mais problemática: stoicheia tou kosmos, traduzida como ‘elementos do mundo’ que aparece duas vezes tanto e, Gálatas quanto em Colossenses) em apenas quatro cartas: Romanos, 1 aos coríntios, Colossenses, e Efésios. Dessas quatro cartas somente Romanos e 1 aos coríntios são indiscutivelmente de autoria paulina, e de longe as maiores concentrações desses termos são encontradas em Colossenses (oito vezes), e Efésios (11 vezes). É argumentado que a ênfase expandida sobre os “poderes” nessas cartas pode refletir situações culturais e religiosas específicas sendo tratadas nos dias de Paulo (ex. Mágica em Éfeso; ver Arnold, 1989) ou na era pós-paulina.
2.3 Termos específicos: O significado desses termos se fia, primariamente, no uso feito pelo próprio Paulo. Mas o contexto mais amplo de seu uso em outra literatura disponível – particularmente na literatura judaica – anterior ou contemporânea a Paulo oferece luz aos significados que Paulo pode ter empregado em seu próprio uso dessas expressões. Mas a evidência deve ser analisada com cuidado. Afirmações de que esses termos se referem a poderes cósmicos tem sido freqüentemente baseados em evidências que são um século, ou mais, velhos do que Paulo.
2.3.1. Archai (“Principados” ou “governantes”: Rom. 8:38; 1 Cor. 15:24; Ef. 1:21; 3:10; 6:12; Col. 1:16; 2:10, 15). Arch- era o prefixo mais usado para palavras gregas que denotavam posição de poder humano (Wink, 13). Em Daniel 7:27, onde os governantes dos reinos terrenos servem ao Altíssimo, o texto grego de Teodócio os retrata como archai (LXX exousai). A possibilidade de que o equivalente copta (Etiópia) de archai encontrado em 1 Enoque 61:10, onde ele se refere a poderes espirituais a serviço de Deus, é mais problemática, mas possível (veja, Wink, 153 n. 2).
2.3.2 Archontes (“poderosos”, 1 Cor. 2:6, 8). Esse termo é comumente usado para se referir a governantes humanos, um sentido que Paulo mesmo usou quando ele falou dos governantes como autoridades civis (archontes) em Romanos 13:3 (onde eles portam a espada e coletam impostos). Intérpretes estão divididos sobre se 1 Coríntios 2:6, 8 se refere a poderes humanos ou espirituais, com alguns sugerindo uma referência dupla. À luz desse fato, o argumento em favor de uma referência a um poder cósmico clama por mais apoio.
A possibilidade de archontes se referir a poderes espirituais é ilustrada pelos textos gregos do livro de Daniel. Onde o Texto Massorético usa o Hebraico Sar, tanto a Septuaginta (LXX) e a versão de Teodócio (texto do final do segundo século, mas provavelmente baseado em um texto grego bem mais antigo) falam de Miguel, o arcanjo de Israel como heis tōn archontōn tōn prōtōn (Um dos primeiros príncipes) em Daniel 10:13. Teodócio também usa archon (singular) para Miguel em Daniel 10:21 e 12:1, onde a LXX usa angelos. Além do mais, em Daniel 10:20-21, onde a LXX fala do líder espiritual (Sar) da Pérsia e da Grécia como strategos, Teodócio consistentemente usa archon. O termo hebraico sarin, significando ‘chefes’, ‘príncipes’, ‘capitães’ ou ‘governadores’, como poderes espirituais malevolentes dessa era, pode muito bem estar por detrás do uso de archontes por parte de Paulo em 1 Coríntios 2:6, 8 (cf. Sar no sentido positivo como um “governante/príncipe da luz” que foi apontado para defender Israel contra Satanás, ou contra o Anjo das Trevas em Qunran [1 QM 13:10; 1 QS 3:20]).
Em 1 Cor. 2, onde Paulo fala dos archontes tou aiōnos toutou (‘os poderosos deste século’; cf. 2 Cor. 4:4) que se reduzem a nada (tōn katargoumenōn, 1 Cor. 2:6) e que não compreenderam a secreta sabedoria de Deus e então crucificaram o Senhor da Glória (1 Cor. 2:7-8), temos um contexto que nos compele a entender archontes como se referindo a poderes espirituais (mas veja Fee, 103-5). Ninguém precisa apelar para a cosmologia do gnosticismo ou proto-gnosticismo para verificar seu uso. Se Paulo tinha em mente a cosmologia de Daniel a respeito dos poderes espirituais que estavam “por detrás” das nações, bem facilmente ele poderia ter usado archontes como um termo geral para designar os poderes espirituais que, como os chefes por detrás da sabedoria deste século, eram cegos à sabedoria do plano de Deus para todas as eras (cf. Ef. 3:10) e então crucificaram o Senhor da Glória. A presença do tema da oposição satânica a Jesus como ela está registrada na tradição do Evangelho – uma oposição culminando à sua condução à cruz (ex. Lc. 22:3, 53) – provavelmente representa um entendimento amplamente difundido no cristianismo primitivo a respeito do conflito espiritual que esteve por detrás da oposição humana que conduziu Jesus à cruz (cf. o uso de archon em referência a Belzebu em Mc. 3:22).
2.3.3 Exousiai (“potestades” ou “autoridades”: 1 Cor. 15:24; Ef. 1:21; 2:2; 3:10; 6:12; Col. 1:16; 2:10, 15). Esse termo é mais freqüentemente usado no Novo Testamento pelo direito ou autorização para usar o poder conferido por um gabinete, como é claramente ilustrado no uso que Paulo faz dessa palavra em Romanos 13:3 (Wink, 15, 45-47; cf. Morrison). No texto de Daniel 7:27 na LXX, os governantes que estão sujeitos a obedecer o Altíssimo são chamados exousiai (Contraste com o archai de Teodócio em 2.3.1. Acima). Um exemplo do uso da palavra nos tempos do Novo Testamento, e como uma referência a seres espirituais, é encontrada no Testamento de Levi 3:8. Aqui os exousiai ocupam o mais alto céu e são privilegiados, junto com os thronoi (‘tronos’), em estar na própria presença de Deus (cf. também 1 Enoque 61:10; 2 Enoque 20:1). Nesse caso, é claro, eles são servos de Deus e não do maligno.
2.3.4 Dynameis (“poderes” Rom. 8:38; Ef. 1:21). Em Daniel 8:10 conforme a LXX, os “exércitos do céu” (dynameis tou ouranou) e as “estrelas” são lançadas por terra e pisados pelo “chifre pequeno” (cf. Is. 34:4; Mc: 13:25). Filo usou dynameis freqüentemente para se referir a poderes angélicos (ex. Filo, Migr. Abr. 181), e em Jubileus 1:29 é usado como “exércitos do céu” (cf. “dos céus” em 1 Enoque 61:10 e como uma parte do exército celestial do sétimo céu em 2 Enoque 20:1). Na LXX Yahweh Sabaoth é mais traduzido por Kyrios ton dynameon (“Senhor dos poderes”), do que por kyrios tōn stratiōn (“Senhor dos exércitos”) [onde Sabaoth se refere ao exército celestial de Yahweh). Isso pode refletir o uso freqüente da palavra dynameis em textos judaicos referentes a forças militares (cf. ex. Salmo 102:21; veja Wink, 159-61). Essa associação militar sugere que a mesma conotação deve estar presente no uso de dynameis em Romanos 8:38 e Efésios 1:21, onde os poderes referidos devem ser contrários a Deus.
2.3.5 Kyriotetes (“Domínios”, “soberanias”: Col. 1:16; Ef. 1:21[singular kyriotes]). Não é claro se kyriotetes está por detrás do termo para “domínios” que é parte do exército celestial do sétimo céu em 2 Enoque 20:1 (cf. 1 Enoque 61:10; Wink, 20).
Pode ser plausivelmente argumentado que o termo hebraico memselet, usado para descrever o domínio de Belial em 1 QS 1:18; 2:19; 1 QM 14:9, 18:1; 4Q 286-87, é o equivalente de kyriotes (Wink, 20; contudo note o possível paralelo ao uso em Qunran na frase tēs exousias tou skotous [o império das trevas] em Col. 1:13). Falando de idolatria, Paulo faz referência a “muitos deuses e muitos senhores [kyrioi]” (1 Cor. 8:5), que, por implicação, ele associa aos “demônios” (1 Cor. 10:20). Uma conotação possível é que kyriotetes represente esferas de influência espiritual entendidas inicialmente como sendo os deuses governantes de cada nação.
2.3.6 Thronoi (“Tronos”: Col. 1:16). Esse termo parece ser uma metonímia para se referir ao poder espiritual que ocupa um trono (cf. Asention of Isaiah. 7-8). No texto de Daniel 7:9 na LXX, a palavra thronoi se refere aos tronos colocados no tribunal celestial do Ancião de dias, claramente indicando posições de autoridade transcendente. E em 2 Enoque 20:1 eles são chamados de “tronos de muitos olhos” que ocupam o sétimo céu com o querubim, o serafim, e os poderes celestiais. No Testamento de Levi 3:8 eles ocupam o mais alto céu e são privilegiados ao lado dos exousiai de estarem na própria presença de Deus. O uso desse termo em Colossenses pode ser atribuído à particular configuração das crenças que Paulo desafiou em Colossos, talvez associada com a “adoração de anjos” (Col. 2:18).
2.3.7 Kosmokratores tou skotous toutou (“Os dominadores deste mundo tenebroso”). Kosmokrator é uma palavra usada para designar a deusa Serápis em textos mágicos (PGM XIII. 618-40). Em Efésios a natureza maligna desses poderes é enfatizada pela frase ta pneumatika tēs ponērias en tois epouraniois (“Forças espirituais da maldade nas regiões celestiais”: Ef. 6:12).
2.3.8 Angeloi. Em pelo menos um caso, Paulo fala de angeloi (“anjos”; “mensageiros”) no contexto que sugere que eles são poderes malignos que podem tentar frustrar os propósitos de Deus (Rom. 8:38), e em outras instâncias ele aparentam serem de alguma forma culpados e como objetos de julgamento por parte dos crentes (1 Cor. 6:3). Mais problemático é seu uso na passagem de Col. 2:18, onde os anjos são objetos de uma devoção indevida, ou onde sua adoração a Deus é objeto das aspirações religiosas humanas (note a ambigüidade do genitivo na frase thrēskeia tōn angelōn, “adoração de anjos”: Se esse for um genitivo objetivo ele significa uma adoração direcionada aos anjos em si; se for um genitivo subjetivo ele se refere à adoração dos anjos para com Deus, ou conduzida pelos anjos).
2.3.9 Frases inclusivas. Paulo também emprega quatro frases que são largamente inclusivas de qualquer poder que se possa conceber/imaginar. Em Rom. 3:39, em uma série de pares contrastantes, ele usa uma imagem espacial, “nem altura, nem profundidade” (oute hypsōma oute bathos) que pode se referir ao zênite ou ao nadir dos corpos celestiais e assim englobar toda a amplidão de poderes celestiais (cf. 1 Enoque 18:3, 11). Ou pode se referir para quaisquer poderes que possam ocupar as alturas dos céus ou as profundezas da terra – ou qualquer espaço entre eles.
Em Col. 1:16 “todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis” (ta horata kai ta aorata) são descritas como criadas por Cristo, essas coisas são posteriormente designadas como “Tronos, soberanias, principados e potestades”.
Em Fil. 2:10, ao falar do Cristo exaltado, Paulo retrata a submissão universal ao Senhor Soberano usando uma imagem espacial de um universo “dividido” em três partes: “todo joelho... “no céu, na terra, e bebaixo da terra” [epouraniōn kai epigeiōn kai katachthoniōn] deve se curvar.
Paulo aqui parece incluir todos os seres racionais – humanos ou espirituais, bons ou maus – como em última instância (ou no presente) sendo submissos ao governo de Cristo (Para uma referência aos demônios “do ar, da terra, e de debaixo da terra” consulte PGM IV. 2694-2704). Um eco de Isaías 45:23 relembra o contexto do Antigo Testamento de uma submissão forçada dos poderes terrenos (cf. Is. 45:24 e 24:1) como símbolos apocalípticos.
Finamente, em Ef. 1:21, como a conclusão de uma lista de quatro nomes para designar poderes malignos, nós encontramos uma referência global “todo nome que se possa referir não só no presente século, mas também no vindouro” (pantos onomatos onomazomenou ou monon en tō aiōni toutō alla kai en tō mellonti). Se tomarmos essa expressão como autenticamente paulina, essa seria mais uma evidência de que Paulo nunca intencionou exaurir a possibilidades de nomes para designar essas realidades.
Contra um pano de fundo cultural no qual o sucesso da manipulação mágica era comumente atribuído ao conhecimento do nome específico do suposto poder mencionado/invocado, a carta aos efésios enfatiza o triunfo e a soberania de Cristo sobre todos os poderes – conhecidos, ou desconhecidos, reais ou imaginários, presentes ou futuros.
3. A natureza dos poderes
Nos escritos de Paulo os poderes são mencionados em uma variedade de contextos específicos, mais notadamente naqueles que correspondem a episódios decisivos da vida de Cristo: Eles foram trazidos à existência pelo Cristo pré-existente em sua função criadora (Col. 1:16); foram conduzidos a uma procissão de triunfo no papel de inimigos derrotados na cruz (Col. 2:15, e possivelmente 1 Cor. 2:6, 8); foram sujeitados ao Cristo triunfante, exaltado e reinante (Ef. 1:21; cf. Col. 2:10; Fil. 2:10); e serão destruídos na consumação escatológica do plano de Deus (1 Cor. 15:24).
3.1 Os poderes como criados por Cristo. Colossenses 1:15-16 afirma que Cristo foi o instrumento da criação dos “tronos”, “soberanias”, “principados”, e “potestades”; junto com “todas as coisas nos céus ou na terra, visíveis ou invisíveis,” eles foram criados “em” (en autō), “por” (di˒ autou), e “para” (eis auton) Ele. Os poderes eram, originalmente, criação divina e deveriam encontrar sua razão de existir em Cristo. O mesmo hino cristológico do qual essa afirmação faz parte afirma que Cristo reconciliou todas as coisas consigo mesmo na cruz (Col. 1:20). Podemos assumir que Paulo partilhava da premissa bíblica básica de que a criação original era boa e em total harmonia com os propósitos de Deus. A necessidade de se realizar paz, ao lado da afirmação de que Cristo venceu os poderes na cruz (Col. 2:15), implica em que algo deu errado e que os poderes se tronaram hostis contra Deus e contra seus propósitos. Quanto às circunstâncias dessa transformação nós somos deixados a imaginar. Alguns intérpretes têm mantido que da perspectiva de Paulo o problema com os poderes é que eles haviam sido erroneamente considerados rivais de Cristo pelos colossenses (Col. 2:8, 20). Eles seriam um espectro da imaginação religiosa supersticiosa do qual os crentes em Cristo haviam sido libertos. Mas como já observamos, o entendimento da existência dos poderes como servos angelicais de Deus é bem representada em textos que refletem o judaísmo dos dias de Paulo, e a noção de que alguns deles são “caídos”, seres espirituais hostis, também é encontrada. Portanto nos parece que Paulo entendia que os poderes pertenciam a essa segunda categoria, e que atribuía a eles uma existência espiritual, ontológica, talvez até mesmo no mesmo sentido no qual os colossenses criam.
3.2 Os poderes como inimigos de Deus, de Cristo e de seu povo. O judaísmo palestino dos dias de Paulo estava encarando com um problema persistente e monumental: O poder de ocupação dos romanos que desafiavam a santidade do Templo, da Torá e do território sagrado. Mais do que um problema social e político, esse era um problema teológico que demandava uma Teodicéia. Da perspectiva apocalíptica do judaísmo sectário (das últimas décadas do primeiro século depois de Cristo) nos vem uma resposta que derrama luz na linguagem de Paulo a respeito dos poderes. O rolo da guerra de Qunran (1 1QM, 4QM491–496).
Expandindo o relato da batalha escatológica descrita em Daniel 11:40-12:3 , os rolo descreve uma guerra na qual o Israel Justo, chamado de “filhos da luz”, são ajudados por Miguel e as forças angelicais para derrotar os “filhos das trevas”, sendo esses últimos ajudados por Belial e seus poderes das trevas. Nessa batalha, vários oponentes tradicionais de Israel (Edon, Moabe, Amon, Filistéia, 1QM 1:1-2) seriam derrotados primeiro, com a batalha final sendo realizada contra o reino de “Quitim de Assur” (1QM 1:1-14; 11:11 cf. Números 24:24), provavelmente como uma referência aos romanos e sua invasão da palestina na segunda metade do século 1 antes de Cristo. A apropriação do rolo da guerra da linguagem e do imaginário das guerras divinas e dos nomes dos inimigos tradicionais de Israel, agora fortalecidos por poderes demoníacos, sugere um caminho para o entendimento da forma como Paulo retrata os poderes.
Sendo anteriormente um judeu fariseu Paulo professa ter tido grande zelo pela causa de Israel (Gál. 1:13-14; Fil. 3:5-6), uma paixão transformada pelo encontro com o Senhor ressurreto (ex. Rom. 9:1-5). Com a conversão de Paulo veio uma reavaliação radical do lugar da Torá, do templo, e das promessas territoriais no plano redentor de Deus. Além do mais, os gentios, sendo inicialmente reconhecidos como inimigos dos propósitos de Deus na história, eram agora o próprio povo para o qual ele foi chamado para proclamar as boas novas (O Evangelho) da paz escatológica iniciada pelo Messias, Jesus. Não mais os gentios eram inimigos de Deus (Rom. 5:10; 8:7; 11:28; Col. 1:21).
Na teologia de Paulo encontramos evidência de uma mudança hermenêutica pela qual os símbolos tradicionais de Israel foram reinterpretados, incluindo-se a Torá, o Templo, o Sacrifício, a Pureza, o Povo de Deus e até mesmo a herança da terra (Col. 1:12-14). Do mesmo modo parece que o tema de Yahweh como guerreiro Divino e dos inimigos tradicionais de Israel foi transformado. Os gentios, que em algum tempo estavam “longe”, alienados e inimigos (Ef. 2:17; cf. Col. 1:21), se tornaram agora o foco da graça de Deus. Eles não mais poderiam ser considerados os inimigos de carne e osso, os objetos do “ban” (ḥērem) no antigo concerto de guerra Divina. A penalidade, paradoxalmente, foi lançada sobre o próprio messias enquanto ele estava pendurado na cruz (Gál. 3:10-14) e abriu caminho para que judeus e gentios se tornassem um novo povo escatológico em Cristo (Ef. 2:14-18). Os verdadeiros inimigos não eram mais os romanos, mas os poderes espirituais que estavam por detrás dos rostos humanos que exerciam autoridade e eram os imperadores desse mundo.
Aqui Paulo pôde achar um precedente no Antigo Testamento: “Quando o Altíssimo distribuía as heranças às nações, quando se separava os filhos dos homens uns dos outros, fixou os limites dos povos, segundo o número dos filhos de Israel. Por que a porção do Senhor é o seu povo; Jacó é a parte da sua herança.” (Deut. 32:8-9; cf. Eclesiástico 17:17; Jubileus 15:31-32). Os deuses e idolos das nações eram em realidade demônios (Deut. 32:17; cf. 1 Cor. 10:20) que haveriam de serjulgados pelo juiz de toda a terra (Salmo 82; Is. 24:21). Esse entendimento dos poderes espirituais por detrás das nações foi posteriormente desenvolvido na visão das bestas monstruosas representandos impérios em Daniel 7:2-8 e o “princípe” da Pérsia e da Grécia que foram combatidos por um “semelhante a um homem” e Miguel, o Princípe de Israel, em Daniel 10:13, 20-21. E há evidência de que Paulo era acompanhado por outras nessa visão de mundo (cf. Jubileus 15:30-32; 1 Enoque 89:59-61; 90:20-25 onde os setenta pastores parecem representar os anjos das nações; cf. Is. 24:21).
O contexto imediato de 1 Cor. 15:24 não deixa dúvidas sobre se Paulo em alguma vez falou dos poderes como malignos, pois eles estão listados entre os “inimigos escatológicos” (echthroi, 1 Cor. 15:25-26; cf. Ef. 6:12), incluindo a morte. Os poderes também habitam o pano de fundo do drama da redenção: aparecendo como barreiras potenciais para que se ame a Cristo, mas eles são, não obstante, impotentes em última instância para frustrar do triunfo final de Cristo (Rom. 8:38). Em efésios eles ainda mais ousadamente apresentados como inimigos de Cristo que se apõem à igreja no presente século (Ef. 6:12). De seu ponto vantajoso “nas regiões celestes”, eles também observam a sabedoria de Deus se desdobrando em seu plano para todas as eras (Ef. 3:10).
4. Cristo e os poderes
Paulo utilizou a história de Israel para contar a história de Cristo. O padrão progressivo da guerra, vitória, realeza, construção do templo, e celebração, evidente no Antigo Testamento (e nos padrões míticos do oriente antigo) foi transposto por Paulo. Cristo Jesus, que lutou contra os inimigos e foi vitorioso (Col. 2:15; cf. Col. 1:12-14), era agora exaltado e reina como Rei Celestial (1 Cor. 15:24-26; Fil. 2:9; Col. 3:1; Ef. 1:20-22; 1 Tim. 3:16), estava construindo um novo templo (1 Cor. 3:16-17; 2 Cor. 6:16; Ef. 2:19-22) e recebendo louvor e obediência (Fil. 2:10-11). O inimigo para Paulo não consistia nos romanos ou nos gregos, mas nos “principados e potestades” (assim como no pecado, na carne, na morte, e inclusive na Lei), assim nomeados para acentuar a autoridade e o domínio que eles exercem nesta era. Como os reis dos gentios que se tornariam a soleira dos pés do rei Davidico (Salmo 110), os principados e as potestades já estavam e finalmente seriam colocados debaixo dos pés de Cristo (1 Cor. 15:4-28). Se Paulo falou desses poderes como sendo apenas destituídos de poder e trazidos ao serviço de Cristo ou como absolutamente derrotados e destinados à aniquilação definitiva, é uma questão ainda debatida. Contudo, a linguagem que Paulo emprega em 1 Cor. 15:24 para falar de seu fim (katargeō, usado também para designer a derrota da morte e 1 Cor. 15:26) sugere fortemente sua derrota e aniquilação definitiva sem possibilidade de redenção. Mais uma vez aqui a linguagem reflete o “ban” (ḥērem) das guerras de Yahweh.
Se os poderes estiveram presentes de tal forma nas narrativas paulinas a respeito de Cristo, eles foram também reconhecidos como poderes cósmicos hostis que incutiam medo nos corações de muitas pessoas do império romano dos dias de Paulo. Seja por sua associação com a magia, com os mistérios, ou com a astrologia, a religião popular do primeiro século no mundo mediterrâneo concebia um cosmos assobrado por espíritos nos céus, na terra, e debaixo da terra. Paulo se dirige à essa situação ao anunciar que os poderes das trevas foram derrotados por Jesus Cristo na cruz. Apesar de seus poderes continuarem reais e potentes, eles não deveriam mais ser temidos por aqueles que estão “em Cristo” (Rom. 8:37-39). Dessa forma Paulo falou da hostilidade dos poderes nesta era e de sua derrota por Crist, e o fez em uma linguagem que não era apenas fundamentalmente judaica em seu eco dos arquétipos do Antigo Testamento e no padrão da redenção, mas em uma linguagem que ressoava nos corações da audiência gentílica.
Efésios desenvolve o tema da hostilidade dos poderes em relação à igreja. Em efésios 6:12-17 a luta terrena da igreja é retratada numa moldura de imagens reminiscentes das guerras santas de Israel. Mas aqui o inimigo não é “carne nem sangue”, mas espiritual. A guerra é conduzida contra “principados, potestades, forças espirituais da maldade nas regiões celestiais” (Ef. 6:12). Esses poderes estão sob a direção de seu líder, o Diabo, cujas maquinações (methodeiai) eles conduzem em combate contra a igreja. As armas da igreja são tanto defensivas como armadura e escudo (Ef. 6:13-17), quando ofensivas: a “espada do Espírito” (Ef. 6:17).
O poder da igreja militante é encontrado no “Senhor e em seu Poder” e representa os benefícios da obras de Jesus Cristo. Dessa forma a igreja resiste ao inimigo e avança a partir e uma posição de poder fundamentada no “já” (presente) da derrota do Diabo e de suas forças. Enquanto a terminologia da parafernália militar é tirada do mundo romano, o arquétipo da guerra é claramente israelita.
O quando completo do conflito e da vitória na teologia de Paulo deve levar em consideração suas afirmações sobre os “elementos” ou “espíritos elementares do mundo”: Satanás, demônios, e sua descrição da carne, do pecado, da morte e da Lei como inimigos de Cristo. Mas os traços essenciais de sua perspectiva estão claros em suas afirmações sobre os principados e potestades.
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Um comentário:
muito bom
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